Elogio e crítica: estamos vivendo na cena do elogio mútuo?
“Agoniza, mas não morre”, foi o que disse Nelson Sargento sobre o samba há 40 anos e que serve, hoje, para situar a confusão em que se meteu a crítica musical no Brasil, como bem pontuou o jornalista e crítico musical Lauro Lisboa Garcia, no texto de abertura da publicação digital Zumbido (Selo Sesc, 2017).
É evidente que toda a cadeia da indústria fonográfica sofreu um abalo com o domínio da Internet no cotidiano das pessoas. Tudo foi alterado, direta ou indiretamente. Principalmente, como nos comunicamos e consumimos. E a música está inserida nessa equação.
O produto música passou a ser consumido de maneiras diversas e toda a indústria teve que olhar para dentro do processo. O mercado ficou complicado e confuso. Os gigantes permanecem tendo recursos para remunerar quem entende toda essa louca dinâmica e de acordo com seus interesses conseguirem tirar o melhor proveito de tudo. No submundo, nem tão fundo mais, está a cena independente, tentando também, à sua maneira, sobreviver e entender o mercado tanto quanto os grandões.
A crítica em crise
Lauro Lisboa, em seu texto, pontua diversos elementos presentes nessa possível crise da crítica musical brasileira. Ele fala sobre a escassez de espaços nos jornais impressos, comenta também sobre as provações financeiras que jornalistas e músicos passam ao longo de suas carreiras e também da famosa camaradagem dentro desse bolo todo, o que poupa o artista e sua obra lá no final.
É nítido e consenso que o papel do crítico musical em 2020 mudou muito daquele de meados do século XX para cá. A pessoa que fazia a crítica determinava todo um modo de consumo artístico daquela semana, mês ou ano. Ele delimitava para o público o que valia a pena ou não. Acredito que hoje a figura do crítico esteja muito mais atrelada a nos situar em nosso tempo, nos fazer pensar a música enquanto linguagem artística e ferramenta social.
A cena do elogio mútuo
Em 1865 o escritor português António Feliciano de Castilho inseriu uma carta-posfácio no livro Poema da Mocidade, de Pinheiros Chagas (1865). António criticou abertamente sobre a obra de Teófilo Braga e Antero de Quental, questionando a poética dos dois autores. Antero publicou então um importante documento, que hoje conhecemos como “Questão Coimbrã”, intitulado de Bom Senso e Bom Gosto, onde — vejam só — o autor defende a liberdade dele e dos outros amigos escritores em criar uma poesia sem pedir licença aos mestres, mas sim, somente consultar o “seu trabalho e a sua consciência”. Muito mais que isso, Antero defende as possibilidades de falarem sobre o seu tempo, através da poesia, “cultivar a ideia e não somente a palavra”. Quental dizia também que, para ele, os seguidores de Castilho apenas o imitavam e não se reinventavam. Resultando em uma poesia que “soa bem, mas não ensina”. Antero também apelidou a escola de Castilho como Escola do Elogio Mútuo, contestando o exagero dos elogios feito entre os seus membros ao mentor.
Para o jornalista Paulo da Costa e Silva (Piauí, 2015), estamos em uma espécie de Escola do Elogio Mútuo, ou como escrito pelo próprio autor, uma Sociedade do Elogio Mútuo. Um lugar onde
“não há mais espaço para a crítica”, aquela que é “capaz de trazer elementos negativos, que indagam a obra, que a questionam de modo sincero sobre sua relevância. Só o elogio é válido.”
Ele transpõe toda essa ideia para os diferentes nichos da cena independente e indaga sobre a carência da problematização acerca de algumas obras. E nesse ponto Paulo levanta, novamente, assim como Lauro, questões a respeito do papel da crítica, onde ela, vez ou outra, se torna interessante quando alavanca as vendas do show de algum artista e/ou quando concorda com o consenso alternativo.
No independente
Se nos aprofundarmos na cena independente a partir dessa ótica toda perceberemos que nesse território a crítica não é bem-vinda (aquela da década de 1970). Na verdade, o que temos é um muro de proteção aos artistas onde o discurso transformou-se em “ah, vamos dar uma força, a banda tá no começo”. E até mesmo, como diz Paulo, forjar um circuito que inexiste, onde estão o artista e o seu público somente, protegidos. A importância é dada muito mais à figura do artista do que sua obra. Soa bem.
Não estou dizendo aqui que o papel do crítico (se ele ainda existe) deva ser do raso “meter o pau”. Mas sim o de trazer à tona questões a respeito da música feita hoje, falar de processos e desafiar os artistas que estão se distanciando da crítica e da maneira de lidar com ela. Nesse contexto, Paulo diz que os artistas estão cada vez mais mimados, fracos e não conseguem lidar com qualquer objeção aos seus trabalhos, resultado da exacerbada bajulação dessa “sociedade do elogio mútuo”.
Nesse caso, me pergunto se não estamos vivendo muito mais a crise do formato, ao invés do conteúdo. Os formatos de se consumir textos como este, por exemplo, mudaram também. Entretanto, há quem sinta falta de conteúdo embasado, aprofundado. Será então que não devemos repensar o papel dos sites sobre música? Sairmos dessa “benevolência laudatória”? Não sermos mais repositórios de releases apenas para dar “aquela forcinha”? Falar da música em si, no fim das contas.